Crónica de Alice Vieira | Ainda as pessoas estranhas
AINDA AS PESSOAS ESTRANHAS
Alice Vieira
Há umas semanas falei aqui, como sendo uma pessoa estranha, do jornalista Felix Correia, nazi assumido e das melhores pessoas que conheci.
Hoje é uma história um pouco ao contrário dessa.
Estava eu a tomar o pequeno almoço no “meu” café, quando se chega uma jovem, aí pelos seus trinta anos, que me disse:
–Não se lembra de mim, claro, chamo-me Leonor, e tinha para aí quatro ou cinco anos quando a conheci, mas determinou o meu futuro: por sua causa é que soube logo o que queria ser e que mais tarde escolhi o curso que fiz e a vida que tenho.
Mal a Leonor começou a contar a história eu lembrei-me logo de tudo, absolutamente de tudo, como se estivesse a ver a cena outra vez.
Quando eu estava no Diário de Notícias, para além de tudo o que eu fazia, era responsável por um suplemento infantil —“O Catraio”—para onde miúdos até aos 10 anos mandavam desenhos e textos que eu selecionava e publicava.
A Leonor mandou uns desenhos e foram publicados.
Nessa altura a pintora Vieira da Silva estava em Lisboa. Uma jornalista da RTP foi entrevistá-la. Então ela fartou-se de se queixar do estado da arte em Portugal, que não havia novos pintores de grande qualidade, o que havia era mesmo muito mau—e puxa do “DN” que levava debaixo do braço, abriu-o e disse à jornalista:
–Olhe, o desenho desta miúda é bem melhor do que muita coisa que vejo por aí.
Era o desenho da Leonor.
Vai daí o meu chefe entrou em contacto com a Vieira da Silva e convidou-a a vir ao jornal. Chamámos a Leonor e a mãe e, à hora combinada, estávamos todos prontos, e um pouco nervosos por irmos conhecer tamanha celebridade.
Pois bem: nunca vi ninguém tão antipático e malcriado.
Olhou para a Leonor—que tinha o jornal aberto na página onde o desenho estava publicado—e começou logo a dizer que aquilo era um desenho igual aos que todos os miúdos faziam, que ela só o tinha mencionado para mostrar como toda a arte portuguesa era má, que não pensasse que ia ter futuro nas belas artes e que era melhor fazer outra coisa.
Penso que a Leonor nem estava a perceber aquilo tudo, e estendeu-lhe um livrinho a pedir-lhe um autógrafo.
–Não dou autógrafos a ninguém.
Virou costas, nem bom dia nem boa tarde, e foi-se embora.
E então eu disse à Leonor que não fizesse caso, a senhora estava maldisposta—e que eu achava que ela tinha mesmo jeito e que continuasse a desenhar, e que quando fosse crescida se calhar iria mesmo para Belas Artes.
E a Leonor cresceu, foi para Belas Artes, pinta muito bem e é essa a vida que quer ter.
Se calhar, a Vieira da Silva, com todo aquele seu desdém e antipatia, sem o saber até praticou uma boa acção.
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